Há quase 35 anos, Portugal acordou com militares na rua e um regime decrépito a render-se às evidências da História. De protesto castrense, assente em motivações de natureza meramente corporativa, o movimento que derrubou o Estado Novo evoluiu para contornos mais marcadamente políticos, que nos célebres 3 D - “descolonizar, democratizar, desenvolver” - encontrariam indubitável expressão.
É aos “capitães”, em primeiro lugar, que se deve o país livre que hoje somos. O 25 de Abril de 1974 foi feito com chaimites e fardas. Não prescindiu, porém, da colaboração cúmplice de um punhado de civis que, cada um à sua maneira, contribuíram para o sucesso. É essa parcela da História que o JN hoje recorda, consciente de que a participação civil no golpe está longe de esgotar-se nas cinco figuras apresentadas.
Pelas páginas seguintes passa o papel desempenhado pelo arquitecto Braula Reis, que cedeu o seu ateliê para a realização de uma das reuniões decisivas do Movimento das Forças Armadas, nas vésperas do golpe. Dos jornalistas João Paulo Diniz e Carlos Albino, os quais estiveram ligados à emissão via rádio das senhas que desencadearam as operações militares. De outro jornalista, Joaquim Furtado, que aos microfones do Rádio Clube Português leu o primeiro comunicado dos revoltosos, que arrancava com a frase-chave: “Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas”. Do advogado oposicionista Francisco Sousa Tavares, que nos tensos momentos que precederam a rendição de Marcello Caetano, num Largo do Carmo pejado de gente, ousou pegar num megafone para exortar à mobilização popular.
Nada menos de 197 militares no ateliê um arquitecto, situado no coração de Cascais. Ainda hoje Paulo Braula Reis duvida que aquela reunião do MFA, de 5 de Março de 1974, tenha passado despercebida à PIDE. “Deve ter sido um número de filme italiano”, observa o filho do proprietário do espaço, que então tinha apenas 17 anos.
João Braula Reis, que morreu há duas décadas, navegava nas águas dos católicos progressistas, com o seu amigo Nuno Teotónio Pereira, que recorda ao JN o “caminho comum”. Na oposição à Ditadura e nas lides profissionais - assinaram os dois o projecto do edifício “Franjinhas”, em Lisboa, distinguido com o prémio Valmor.
A ligação do arquitecto aos revoltosos foi feita através do irmão, capelão militar - hoje pároco da igreja de S. Domingos, em Lisboa - que conhecia Sanches Osório, um dos envolvidos. A decisão de ceder o ateliê foi partilhada com a família. “Tínhamos cinco filhos. Se desse para o torto, era complicado”, admite a viúva, Maria Eugénia, que sendo professora numa escola pública também corria riscos.
Não foi uma reunião qualquer, a de Cascais. Foi aquela em que, pela mão de Melo Antunes, o MFA adquiriu uma feição mais política e ideológica, graças à aprovação do ambicioso documento “O Movimento, as Forças Armadas e a Nação”.
Coragem e espírito solidário são as qualidades que evoca quem privou com João Braula Reis. Paulo, que nos tempos de estudante de Arquitectura alinhou em grupos contestatários, assegura: “Nunca vi o meu pai militante de coisa nenhuma. Não era homem de partido”. Após o 25 de Abril, ainda foram os dois (e a mãe) ao I Congresso do Movimento de Esquerda Socialista, onde pontificava Jorge Sampaio. Como militante, só Paulo, porque o pai não cedeu à tentação. Ao contrário de Teotónio Pereira, dirigente do MES e até candidato a deputado, João Braula Reis concentrou-se na actividade profissional. “Era muito autónomo. Nunca ambicionou cargos públicos e não queria ‘penachos’; até fugia disso”, afirma o filho.
O diálogo começou mais ou menos assim: “Tenho ali no carro os discos que te trouxe de Israel”. Estranhou a familiaridade de alguém que não conhecia, mas alinhou. O desconhecido apresentou-se, na discrição do automóvel: era capitão, chamava-se Costa Martins e precisava que ele emitisse o sinal para um golpe de Estado. Receoso de que o interlocutor fosse agente da PIDE, João Paulo Diniz recusou. “E se for o Otelo a pedir?”. Aí sim, talvez, mande-lhe um abraço meu… “Tem de ser hoje!”.
E foi: nesse dia 22 de Abril de 1974, no centro comercial Apolo 70, em Lisboa, encontrou-se com o homem com quem se cruzara na Guiné, entre 1970 e 72, quando cumpriu serviço militar como animador do “Programa das Forças Armadas”, o “Pifas”. Otelo foi directo ao assunto. Tratava-se “apenas” de derrubar o regime, para acabar com a guerra colonial e democratizar o país. “E se correr mal?”. Resposta pronta: “Nós vamos para o forte da Trafaria e tu, que és civil, para [a prisão de] Caxias”. João Paulo, que aos 25 anos não tinha ligações aos meios oposicionistas, ficou “comprometido a partir desse dia”.Subsistia um óbice: a hora a que eram emitidos os seus programas no Rádio Clube não servia. A alternativa seria o dos Emissores Associados de Lisboa. Ficou assente o teor da senha, a primeira da revolução, para as unidades militares da região: “Faltam cinco minutos para as 23 horas”, seguida da canção “E depois do adeus”. João Paulo rejeitou a opção por Zeca Afonso, passível de levantar suspeitas. O tema de Paulo de Carvalho, que vencera o Festival da RTP, estava na berra e ficava no ouvido.
Cumpriu a missão “muito sereno e com a noção da responsabilidade”. Nunca quis benesses, porque “o que se faz pela Pátria não se agradece”. Rende homenagem aos capitães, “que arriscaram tudo em troca de nada”, e a quem, anonimamente, se bateu contra o regime. Como o seu pai, Raúl, que pagou com a deportação por dois anos, em Cabo Verde, a luta pela liberdade.
O coronel da Censura estava lá, no estúdio, de onde, 19 minutos e dez segundos após a meia-noite do dia 25 de Abril, foi emitido o primeiro verso da canção de Zeca Afonso “Grândola, vila morena”. A senha estava dada, a nível nacional, através da Rádio Renascença, para que os militares partissem dos quartéis. Saíra de um registo magnético inserido no programa “Limite”, produção independente que alugava as antenas. O censor nada disse. A canção não integrava o index da rádio e o MFA saiu mesmo para a rua, naquela madrugada libertadora. Só dois homens presentes no estúdio sabiam da importância da gravação ir para o ar à hora certa, o realizador Manuel Tomás e o jornalista Carlos Albino, produtores do “Limite”.
“Estava combinado com o comando do MFA que a senha seria emitida entre os 19 e os 20 minutos depois da meia-noite. Exactamente às 0 e 19, quando o técnico ia carregar no botão para introduzir a gravação da publicidade, o Manuel Tomás deu-lhe um safanão e fez entrar o registo magnético. Dez segundos após o início da hora acordada”. Segundos de tensão que Carlos Albino recorda com precisão.
O jornalista, que fora oficial miliciano e estava por dentro das movimentações dos capitães, tinha preparado tudo. A canção-senha passara incólume pelo crivo da censura, um mês antes, quando o programa “Limite” emitira em directo o espectáculo de canto livre , onde Zeca Afonso, no Coliseu dos Recreios pejado de pides, cantou “Grândola, vila morena”.
“O teste estava feito e por isso foi a canção escolhida”. As horas seguintes naquele estúdio de rádio foram de nervosismo contido. Carlos Albino nada sabia do que se passava cá fora. Tinha ficado combinado que no final do programa dois elementos da confiança do MFA iriam buscá-lo, mas ninguém apareceu. Era um risco, porque a Renascença, vizinha do Governo Civil, fica perto da sede da PIDE. “Às 4 horas, fui com medo para casa e só às 6 obtive a informação de que tudo estava a correr bem”. De manhã, seguiu para a redacção do “República”, jornal onde então trabalhava.
Hoje, Carlos Albino está reformado. A gravação original da senha que há 35 anos fez história, devidamente restaurada, encontra-se à guarda da Fundação Mário Soares.
A voz certa estava no local certo à hora certa. Era a de Joaquim Furtado, um jovem de 26 anos “noticiarista, porque na ditadura, os jornalistas da rádio não eram jornalistas”, a quem cabia garantir os noticiários nas madrugadas das quintas-feiras, no Rádio Clube Português.
“Estava num gabinete a preparar as notícias que iria ler às 4 horas, quando dei pela presença, à minha frente, de um militar armado. Disse-me que havia um movimento militar e não explicou mais nada. Sabia-se que a situação político-militar no país era precária. Tinha havido o golpe das Caldas e existiam rumores de que os ‘ultras’, sob a chefia de Kaúlza da Arriaga, estavam a movimentar-se. Temi que fosse um golpe de Direita”, recorda. Quando o capitão Santos Coelho disse que o objectivo era depor o regime, fazer eleições livres, libertar os presos políticos e acabar com a censura, Joaquim Furtado não precisou ouvir mais nada. O MFA podia contar com ele.
Os capitães, que tinham escolhido o Rádio Clube para posto de comando, redigiram os comunicados para ler aos microfones, mas tinham esquecido um pormenor, a voz. Porque não a de um profissional de rádio, do único que estava ali, diante deles?
“Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas”. Com estas palavras, às 4h26m, da madrugada de 25 de Abril, Joaquim Furtado tornou-se a voz da revolução, ao ler o primeiro comunicado do MFA, emitido para todo o país.
Quem poderia aplacar a maré exultante que encheu rapidamente as praças e ruas de Lisboa, aderindo primeiro, e tomando conta depois, de uma revolução que só pecava por tardia? Só alguém que por ela, ou melhor, pela promessa de Democracia que dela emanava, tivesse lutado uma vida inteira. Como Francisco Sousa Tavares, o advogado e jornalista que participara activamente, em 1958, na campanha presidencial de Humberto Delgado - resultando daí a expulsão da função pública - depois de ter recusado, em 1947, a candidatura a deputado à Assembleia Nacional e o cargo de governador Civil de Castelo Branco, averbando ainda três detenções pela famigerada PIDE, por ser contrário à guerra colonial e não ter enjeitado a defesa, como jurista, de muitos comunistas.
Pois nesse memorável dia 25 de Abril, Sousa Tavares empunhou a sua melhor arma, o verbo feroz. De megafone na mão e do alto de uma guarita, foi o primeiro político a falar ao povo concentrado no Largo do Carmo, que aguardava a rendição de Marcello Caetano. Apesar de muita gente se sobrepor à sua voz amplificada aos gritos de “desce daí! Quem é que te encomendou o sermão?!”, o eficaz orador do Tribunal da Boa Hora conseguiu impedir a turba de destruir tudo o que simbolizasse o regime em agonia.
Embora monárquico, aderiu nesse mesmo ano ao PS, que abandonaria mais tarde. Após breve passagem pelo PRD, ingressou no PSD em 1981. Chegou a integrar a direcção do partido, em representação do qual ocuparia o cargo de ministro da Qualidade de Vida, em 1983, no Governo do Bloco Central. Morreu a 25 de Maio de 1993, pouco antes de completar 73 anos.
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