25 de Abril

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Estamos entregues a uma gente ignara

A Bertrand vai reeditar a obra do seu autor mais prestigiado: Aquilino Ribeiro. No que me diz respeito farei tudo para que este importante empreendimento cultural seja divulgado. O grande escritor não foi, apenas, um demiurgo: foi a súmula de uma cultura, o resultado e o epítome de um projecto estético e ético sem paralelo na literatura portuguesa. Aquilino, como Vieira ou Camilo, não deixa discípulos.

A Bertrand vai reeditar a obra do seu autor mais prestigiado: Aquilino Ribeiro. No que me diz respeito farei tudo para que este importante empreendimento cultural seja divulgado. O grande escritor não foi, apenas, um demiurgo: foi a súmula de uma cultura, o resultado e o epítome de um projecto estético e ético sem paralelo na literatura portuguesa. Aquilino, como Vieira ou Camilo, não deixa discípulos.

A sua pessoalíssima visão do mundo, o sopro épico do seu trabalho, a estrutura verbal de todos os seus livros - são irrepetíveis. Aquilino é para ler, para reler, para saborear e, sobretudo, para aprender. Aprender, não só, a beleza da língua, a versatibilidade musical do texto - mas, sobretudo, para aprender a liberdade.

Livros como o grande clássico «A casa grande de Romarigães», ou «Portugueses das sete partidas», «Os avós dos nossos avós», «O Cavaleiro de Oliveira», «Aldeia» despertam o apetite de quem enseje entrar nessa obra grandiosa e indispensável. O compromisso do grande beirão com a pátria foi um acto moral: preferiu os anulados, os perseguidos, os injustiçados, a arraia-miúda das terras desabridas e hostis, e, com estes figurantes e figurões edificou um monumento.

Convivi, muito jovem, com este português superior. Nunca o vi sem um molho de provas debaixo de braço, a reedição de um livro e a edição de outro; além dos artigos para jornais e revistas, entre os quais, semanalmente, «O Século» e «Jornal do Comércio.» Os neorealistas reverenciavam-no como mestre.

Pela hora do sobre a tarde, reuniam-se-lhe, no Café Chiado (há muito trocado por uma companhia de seguros), escritores, poetas, músicos, cientistas da estirpe de Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Redol, Manuel Mendes, Augusto Abelaira, Namora (que escreveu uma crónica magistral sobre Aquilino), João José Cochofel, Mira Fernandes, Vitorino de Magalhães Godinho, numa conversa nunca adiada e permanentemente rejuvenescida pelo decorrer dos factos e dos acontecimentos. Discutia-se política, literatura. Exigia-se um comportamento ético rigoroso. A época não era propícia aos devaneios da liberdade, mas aqueles homens e, especialmente, Aquilino, eram sólidos exemplos.

Já nesta coluna referi a impressionante lista de portugueses ilustres que assinalaram a cultura portuguesa no século XX, enfrentando a tirania com a força da razão e o poder de resistir. Havia, nessa gente, algo de medular e de imperioso. Entendiam eles que, através da cultura, se poderia modificar as mentalidades. No fundo, continuavam a grande tradição de liberdade e de procura da inovação, marca d’água da geração liberal, com Herculano e Garrett à cabeça, e da de 1870, com Antero, Eça, Oliveira Martins, Ramalho - e ponha lá também o Fialho d’Almeida, habitualmente omitido do rol.

Todos os nomeados, e muitos mais outros, não se limitaram ao seu universo pessoal: intervieram na sociedade portuguesa, através de sucessivos levantamentos críticos a que procederam. A segunda metade do século XX, com o fascismo e a polícia, com os tribunais sem honra e magistrados indignos, apesar dessas afrontas e dos perigos delas decorrentes, os escritores portugueses constituíram a plataforma de probidade entre o seu tempo e os leitores. Regista-se uma unidade exemplar, mesmo entre artistas que não seguiam as mesmas correntes estéticas.

E, tal como os que os antecederam, fizeram um mural da sociedade portuguesa coeva, ainda hoje necessário para quem se interesse em saber as origens de tudo o que nos está a acontecer. Hoje, as coisas sofreram modificações escabrosas para não dizer aberrantes. Salvo três ou quatro escritores actuais, que prezo, respeito e admiro, o que sobra é uma desgraça. E, entre esta «desgraça», designe-se quase todos os muito traduzidos, muito propagandeados, muito aplaudidos. «São os piores», dizia-me, há dias, um velho amigo, professor universitário. «Criticam, até à abjecção, a Margarida Rebelo Pinto, que não faz mal a ninguém, mas que, por vezes, cede a fraquezas do ego, mas silenciam ante o que outras e outros escrevem, e é, de facto, muito mau.»

Perdeu-se a representatividade de uma elite que praticava uma estética da provocação e jamais cedeu aos caprichos do poder. E isto a todos os níveis. Ouvimos os «empresários» e não acreditamos que eles acreditem no que estão a dizer. Além de que se exprimem num idioma rudimentar, falho de gramática e de virtude. Os «políticos», são o que são. A ausência de projecto nacional associa-se à inexistência de convicções. Não nos interessa nada daquilo que, nas televisões, vão tartamudeando, cheios de fadiga e de indigência mental, a esmagadora maioria dos «comentadores.» Exactamente porque são «comentadores» do óbvio.

Os artigos que dirigentes políticos (maioritariamente de Direita, e afins) fazem publicar em jornais, em alguns dos quais pertencem aos conselhos de administração, atingem o território do hilariante, por vazios de sentido e de substância, além, claro!, dos tropeços no português. Estamos entregues a uma gente ignara, soberba e tola. Não seria mau que frequentassem Aquilino. Aprenderiam, talvez, os segredos do idioma, e um pouco do que temos sido, do que fomos e do que somos.

Mas eu sei que estas modestas recomendações vão tombar em saco roto.

Baptista Bastos in Jornal de Negócios


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