25 de Abril

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Aviso, revolta, chamada de atenção? Cinco generais e um coronel - alguns deles envolvidos activamente no 25 de Abril

Primeiro foi Garcia Leandro, ao dizer que muita gente o procurava a incitá-lo a que fizesse alguma coisa para parar a degradação das instituições democráticas.
Mais recentemente foi Rocha Vieira. Num discurso a propósito da batalha de La Lys, o chanceler das Antigas Ordens Militares (cargo para que foi nomeado pelo actual Presidente da República, Cavaco Silva) declarou que os tempos de crise que Portugal atravessa "ignoram o passado da independência e anunciam um futuro sem liberdade".
Faz hoje uma semana, num artigo publicado neste jornal, o general Loureiro dos Santos apelava ao Governo para que, "em vez de insistir em normas à margem do que a Constituição da República prescreve", demonstrasse "o seu apego à democracia e à lei, expurgando o RDM (Regulamento de Disciplina Militar) das inconstitucionalidades que ainda contém" e que, a crer na versão de um anteprojecto em consulta, poderá vir a ter ainda mais restrições ao exercício de direitos dos oficiais na reforma.
Uma obra de um quarto general, Silva Cardoso, tecendo considerações absolutamente desencantadas em relação aos últimos anos da história portuguesa, surgiu igualmente nos últimos dias nos escaparates (ver pág. 4). Nada nas declarações públicas dos outros generais citados neste trabalho autoriza, porém, que se aproxime o seu posicionamento do deles.
Democracia pode perder-se
O que Garcia Leandro e Vasco Rocha Vieira põem em questão, no essencial, é a qualidade da democracia, manifestando um patente receio de que esta possa vir a perder-se.
Une-os, contudo, a todos estes quatro generais - e daí o impacto das suas declarações -, o facto de terem desempenhado funções do maior relevo político-militar no país, a seguir ao 25 de Abril: Garcia Leandro e Rocha Vieira foram governadores de Macau (Leandro inaugurou a lista dos mais altos representantes do Portugal de-
mocrático no território; Vieira protagonizou o arriar da bandeira nacional, 500 anos depois da chegada dos portugueses); Silva Cardoso foi alto-comissário em Angola, depois de ter integrado a Junta Governativa logo após o 25 de Abril; e Loureiro dos Santos desempenhou os cargos da ministro da Defesa Nacional dos IV (Mota Pinto) e V (Lourdes Pintasilgo) Governos Constitucionais.
Leandro, Rocha Vieira e Loureiro dos Santos ostentam ainda no seu currículo, entre outras funções, a vice-chefia do Estado-Maior do Exército e a direcção do Instituto de Altos Estudos Militares, instituição, em Pedrouços, por onde passam todos os oficiais acima de capitães, e do Instituto de Defesa Nacional (Leandro); e a chefia do Estado-Maior do Exército (Rocha Vieira e Loureiro dos Santos).
Tudo razões a justificar uma espé-
cie de aragem gelada que varreu alguns meios políticos e deixou no ar a pergunta inquietante: o que querem afinal os generais, com este insistente cassandrear de péssimo agoiro? Não estarão eles a incentivar ou no mínimo a legitimar a preparação de alguma acção de força que mude o rumo do país?
Nova empresa marítima
Garcia Leandro nem deixou terminar estas perguntas, quando, há dias, começámos a enunciar-lhas por telefone: "Queremos simplesmente uma democracia pluralista que funcione dentro das regras". O facto de ter si-
do ele o primeiro a verbalizar este descontentamento não pode ser visto como qualquer forma de pressão ilegítima. "Há pessoas que não têm só o direito de falar; têm o dever", enfatiza.
Dias depois, à mesa de um almoço marcado para o restaurante (aberto ao público) da Associação dos Antigos Meninos da Luz, a que preside, o general desenvolveria estas mesmas ideias. Não é esta forma de democracia que está errada, esclarece. "O que está errado é o modo como os actores principais a têm servido. E a dificuldade que encontram as pessoas que querem fazer coisas".
"Se Portugal fosse um barco, estava completamente virado para bom-
bordo. Eu até poderia encarar com alguma tranquilidade o futuro do meu país se pudesse dizer assim: "As pessoas com mais de 50 anos são para deitar fora. Mas o que vem atrás é muito bom..." O problema é que não. Não é muito bom", explica Garcia Leandro.
Este general, que actualmente preside ao Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, aceita que nunca como hoje houve tanta gente nova portuguesa com tão altas qualificações no estrangeiro. E sublinha mesmo que desde 1976 Portugal melhorou muito. "Isso está fora de causa. O que me preocupa é o que não se fez ou foi mal feito ou podia ter sido mais bem aproveitado. Nomeadamente as verbas que vieram da Comunidade Europeia: alguém alguma vez se preocupou a sério em apurar quanto dinheiro chegou cá e o destino que lhe foi dado? Tivemos o ciclo da Índia, o ciclo da África e agora repetimos a mesma cena com a Europa."
Portugal dispõe de talentos e competências. Para Garcia Leandro, a
questão central encontra-se em "conseguir integrar isto tudo num esforço nacional conjunto, numa espécie de nova empresa dos Descobrimentos".
Indignação civil
Mobilização, portanto. "Movimento de indignação civil", precisa agora o general, apostado em prevenir eventuais novas más interpretações, como aquelas que, lamenta, deturparam o artigo no Expresso ("A falta de vergonha"). Isto apesar de nele escrever, preto no branco, ser óbvio que "não haverá mais cardeais e generais para resolver este tipo de questões", pois "isso é um passado enterrado. Tem de ser o próprio sistema político e social a tomar as medidas correctivas para diminuir os crescentes focos de indignação e revolta".
Para esclarecer ainda melhor o seu pensamento, traduz em linguagem mais directa: a tarefa de fazer sair Portugal da crise incumbe à "sociedade civil organizada nos partidos", uma vez que são estes que"têm que se reformar".
Vasco Rocha Vieira não quis enredar-se neste tipo de questões. "Eu
digo o que quero, outros que interpretem", respondeu, por fax, ao PÚBLICO. Lidas as perguntas que lhe enviámos (o que quis dizer concretamente no discurso sobre a batalha de La Lys; o que é necessário para inverter a situação; como interpreta esta multiplicação de declarações; e se acha crível que os militares possam começar a conspirar?), o antigo governador de Macau observou ter a certeza de que "nenhuma dúvida" nos restaria sobre o que disse.
General de Abril subscreve
Alfredo Assunção, que neste mesmo dia há 34 anos estava no Terreiro do Paço e no Carmo ao lado de Salgueiro Maia a derrubar o regime, assina por baixo a advertência de Rocha Vieira. "Se não estivéssemos na Europa, se calhar o desânimo era capaz de ser demonstrado de uma maneira mais violenta. Vivemos tempos complicados: as pessoas começam a sentir que a sua liberdade começa a ser coarctada; há esta ideia de os oficiais na reforma passarem a ser abrangidos pelo RDM; os oficiais ligados às associações militares começam a ser vistos de uma maneira enviesada. E tudo se passa com um Governo que aparentemente estaria com o 25 de Abril. Chegamos a uma situação destas num Governo de esquerda", lamentou-se ao PÚBLICO, num contacto telefónico.
Colocadas as mesmas questões a dois outros oficiais superiores ligados estreitamente às operações do dia 25 de Abril de 1974, recebemos dois pontos de vista algo divergentes. O coronel Vasco Lourenço, figura de proa do movimento dos capitães e, hoje, da Associação 25 de Abril, diz que não vê o futuro tão negro quanto Rocha Vieira, até porque acredita "nos que defendem, acima de tudo, a liberdade e na sua capacidade de por ela se baterem".
Vasco Lourenço não tem visto com muita simpatia esta sucessão de declarações por parte de generais. "Para fazer ouvir a sua voz, seja quem for, tem que ter autoridade moral no que respeita aos temas em que quer ser ouvido. Infelizmente, isso não acontece, muitas vezes."
Nos casos em apreço, "por escandaloso, há um que sobressai mais. O general Silva Cardoso, pelo seu passado, pela sua postura, não tem perfil nem qualquer autoridade para afirmar seja o que for. Até porque, normalmente, mente descaradamente", critica.
Reconhece, contudo, que "os tempos actuais são complicados". Do seu ponto de vista e não apenas em Portugal, "o actual regime democrático parece esgotado", com os detentores do poder a fugirem para a frente, sem se aperceberem de que, cada vez mais, vão ajudando a degradar a situação, o que lhe lembra "os velhos senhores de Roma, que não viam o fim do Império a aproximar-se, de forma acelerada, e continuavam em festas e orgias".
Cidadãos ao Parlamento
O general Garcia dos Santos, a quem incumbiu a montagem do sistema de transmissões do golpe de Estado (bem como, ano e meio depois, do 25 de Novembro), lembra que "nenhum ser humano nasce ensinado no que quer que seja". Razão que o leva a considerar "urgente e necessário que se caminhe no sentido de implementar cada vez mais o ensino do que é e de como é viver em democracia e liberdade". Os portugueses precisam de enraizar a ideia de que "essa forma de vida implica a aceitação e o respeito pelas normas que regem uma convivência com responsabilidade e disciplina". Dois conceitos básicos esquecidos ou mesmo ignorados "quer pelos cidadãos, quer pelos dirigentes dos órgãos oficiais institucionais". A aprendizagem das regras democráticas, porém, demorará ainda "duas ou três gerações".
Encontrando-se de algum modo com Garcia Leandro na preocupação em envolver a sociedade civil na resolução da crise, Alfredo Assunção defende a urgência dos movimentos de cidadania "obrigarem os partidos a transformarem-se, a defenderem os interesses das pessoas e a cumprirem os seus programas". Pessoalmente, "defenderia uma mudança da lei eleitoral no sentido de um cidadão comum, através de associações, chegar ao Parlamento". Esta é, para ele, hoje "a grande luta".
Vasco Lourenço defende que os
partidos políticos voltem "à essência da sua criação", pois "não podem continuar a ser agências de empregos, coberturas e agentes de luta do poder pelo poder, causadores e encobridores de corrupção, enfim, maus agentes da democracia".

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