25 de Abril

sábado, 26 de abril de 2008

Prémios, fraquezas e honra


Baptista Bastos




Resistir à tirania, enfrentar o tirano é, antes de tudo, um compromisso com a honra. Trata-se de moral, não de estratégia para memória futura. O resistente, em todas as ditaduras, encarna a liberdade e simboliza o mais nobre dos desafios: não exige, não requer, antes rejeita com veemência que lhe outorguem qualquer recompensa como reconhecimento do que é natural no homem de bem.

Corre, agora, no Brasil, um documento, admirável a vários títulos, de repúdio por aquilo que os signatários (numerosos, entre intelectuais, políticos, artistas) consideram uma “decisão imoral” da Comissão de Amnistia do Ministério da Justiça daquele país. O texto adianta que é “afrontosa, absurda e injustificável” a forma como foram premiados os “cartunistas Ziraldo Alves Pinto e Sérgio de Magalhães Gomes Juaribe, o ‘Jaguar’, fundadores de ‘O Pasquim’, com acintosas e indecentes indemnizações.” De facto, a atentar nos dinheiros atribuídos, as “recompensas” são sumptuosas. E se as compararmos com o grau de dificuldades em que subvive a esmagadora maioria do povo brasileiro, então, o assunto transforma-se em indecência e indignidade.

Para quem não sabe, “O Pasquim” foi um semanário [lançamento: 26. Junho. 1969; enceramento: 11.Fevereiro. 1991] que bravamente lutou contra ditadura militar-fascista implantada, com violência inaudita, pelo golpe de 1964. Entre os jornalistas que o escreveram e editaram contava-se o que de melhor possuía o Brasil, naquele sector: Millôr Fernandes, Fausto Wolf, Ivan Lessa, Paulo Francis, Alberto Dines, e entre outros, muitos mais outros, os cartunistas Ziraldo e Jaguar, os quais, amiudadas vezes davam um jeito no prosear.

“O Pasquim” abriu um precedente, criou um estilo e soprou um vendaval na atmosfera glauca da Imprensa brasileira, exercendo uma influência considerável em outros países, designadamente em Portugal. Atingiu tiragens surpreendentes: 250 mil exemplares por semana. As entrevistas, nas páginas centrais, eram um modelo de virulência e de originalidade. Para os redactores nem o céu constituía limite: foram muito mais do que para além. A impetuosidade interventiva era de tal forma que o Governo Geisel, em 4 de Novembro de 1970, mandou prender toda a Redacção.

Utilizando um estilo coloquial, frequentemente brejeiro e, até, chulo, “O Pasquim” colocou o povo, e a sua trivial realidade, em letra de jornal. Ao mesmo tempo que execrava todos aqueles que, directa ou indirectamente, se haviam cumpliciado com o golpe, aniquilador de uma democracia legítima. Intelectuais do quilate de Ledo Ivo, Nelson Rodrigues, Augusto Frederico Schmidt, Gustavo Corção, Gilberto Freyre, enlamearam o nome e a obra até então realizada, aplaudindo, sem reservas, o golpe de Março. É um momento de grandeza e de miséria moral, dificilmente apagável por quem o viveu. Sei do que falo: estava lá.

O regresso, dificultoso, da democracia, ao imenso país verde, repôs a desejada normalidade. E alguns daqueles que tinham resistido, com as armas, as singularidades e as culturas próprias, continuaram a exercer as suas actividades, numa linha de unidade ética jamais quebrada. Não houve retaliações sobre quem traiu os testamentos da honra. Mas houve assassínios políticos, interrogatórios sangrentos (sob o ensino de especialistas do FBI e da CIA), torturas inacreditavelmente bárbaras, como a do pau-de-arara; violações dos mais elementares direitos – tudo, claro, em nome da pátria, da liberdade e de? Deus!

O governo resolveu ressarcir, com pensões vitalícias e indemnizações copiosas, alguns daqueles que sofreram, no corpo e no espírito, a aleivosia dos militares. Alguns; não todos: muitos recusaram as prebendas; outros, foram esquecidos. Porém, nem Jaguar nem Ziraldo declinaram a oferta, por sinal bem polpuda. O documento da indignação esclarece ainda: “Há que se registar a cupidez vergonhosa de dois jornalistas do nível de Ziraldo e de Jaguar, que encerram suas vidas profissionais desenhando em tinta marrom a charge da desmoralização de suas lutas e da degradação moral de suas biografias. Transformaram em negócio o que pensávamos ter sido feito por dignidade pessoal e bravura cívica. Receberam, por décadas, o nosso aplauso sincero. Agora, por dinheiro, escarnecem de toda a cidadania, chocada e atónita com a revelação de suas verdadeiras personalidades e intenções. Com a ditadura sofreram todos os brasileiros. Por isso não encaramos como negócio lucrativo, prebendário e vergonhoso o que se fez por idealismo, honradez e dever. A ditadura não só não provocou danos terríveis a Ziraldo e Jaguar, como agora os enriquece e os torna milionários à custa de um país de miseráveis e doentes. Aplaudimos os demais jornalistas que fizeram o saudoso semanário pela decisão de não acompanharem Ziraldo e Jaguar nessa pilhagem, roubando dos brasileiros o dinheiro que deveria (e poderia) estar sendo utilizado na construção de hospitais, num país de doentes; de escolas, num país de analfabetos; na geração de empregos, num país de desempregados.”

O requisitório contido no texto de que dou excertos assume a dimensão de um acto moral, e tem sido recebido com manifesto apreço. Millôr Fernandes, transido de revolta e de repulsa pela imoralidade dos seus velhos companheiros, escreveu esta frase lapidar: “Então, eles não estavam fazendo uma rebelião, mas um investimento.”

Em Portugal as coisas não diferem muito. Os que deram o melhor das suas vidas e dos seus sonhos à causa da liberdade fizeram-no como assentimento de ética medular. Os melhores de todos foram deliberadamente esquecidos pelos poderes fácticos ou enjeitaram, com decoro, distinções públicas. Jornalistas, escritores, artistas plásticos, cineastas que somente cumpriram o dever cívico de afrontar o fascismo aceitaram medalhas e diplomas, um tanto despudoradamente porque conhecedores do facto de os maiores resistentes terem sido anulados das listas de oferta. Motivações ideológicas pesaram nas escolhas e nas decisões. Até por essa circunstância alguns dos premiados deviam (em nome do seu passado) ter abdicado das distinções. Para evitar mal-entendidos, acrescento que, por duas vezes, me neguei aceitar honrarias daquela natureza. Também digo que alguns medalhados são meus amigos. O que me não impede de anotar a fraqueza do feito.

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